A melhor síntese que conheço sobre a história da linha ferroviária do Oeste é da autoria do historiador Bonifácio Serra.[1]
Nesse pequeno mas importante texto o autor aborda todas as questões relevantes para uma análise do que foi e do que é hoje essa via estruturante, desde finais do século XIX até ao encerramento de algumas estações e supressão de muitos comboios, acontecimentos que lhe traçaram o destino de linha ferroviária fantasma.
Na verdade, a linha do Oeste servia todo este importante eixo litoral com composições bastantes para passageiros e mercadorias. A linha estava viva, as pessoas contavam com o comboio e esse meio de transporte era mais que uma alternativa, era algo que fazia parte da identidade de um território, de uma identidade social e cultural, desde a capital até à Figueira da Foz.
Socorrendo-me da memória, relembro as décadas de 70 e 80, em que chegavam e partiam pessoas e mercadorias à estação do Valado dos Frades. A azáfama era grande e o chefe da estação, sempre orgulhoso da sua farda, sempre atento, lá vinha com a sua bandeira enrolada e o apito para dar ordem de saída do comboio.
Algumas composições eram colocadas em linhas secundárias para descarregar as mercadorias que depois seguiam os destinos pré-estabelecidos pelo despachante, já os funcionários da estação, com as suas calças e casacos de trabalho azuis, queimados pelo sol, tinham feito o seu trabalho.
Os horários, que eram muitos, estavam afixados nas paredes interiores da estação e os bancos de boa madeira faziam a ponte entre a espera e aquela viagem sempre memorável.
Militares, trabalhadores, estudantes e, no verão, turistas que rumavam à estação do Rossio ou à Figueira da Foz, tendo de mudar em Bifurcação de Lares, para daí seguir o rumo norte, apanhando em Alfarelos a linha do Norte, quando a ligação não era direta a Alfarelos e mesmo a Coimbra.
A Estação de Valado dos Frades era, por assim dizer, o centro da povoação, o ponto de partida para outros destinos e, à volta daquele local, proliferava a vida de uma comunidade: tabernas, taxistas, paragens de autocarros, pessoas que se juntavam por ali e por ali gastavam a sua vida a ver gente nova e gente conhecida.
O armazém, enorme, guardava as mercadorias, também conhecidas por encomendas, e o carrinho de paletes era ótimo para dar umas voltas dentro daquele universo de madeira a cheirar a papelão, café…muitos cheiros, muita coisa para distribuir.
Hoje não existe nada. A estação está vazia de vida, o armazém já não tem os cheiros que o caracterizaram durante décadas. Já enferrujaram as engrenagens do velho guincho por nada fazer e o som do apito do chefe de estação emudeceu, talvez guardado como uma recordação de tempos em que o comboio do Valado era, para esta zona, a principal ligação ao mundo português do norte e do sul.
Progresso, dirão uns, retrocesso, outros afirmarão com grande convicção, mas o facto é que, segundo Bonifácio Serra, “o conhecimento desses traços emblemáticos é parte de um necessário debate sobre a identidade e o desenvolvimento da região.”[2]
A linha do Oeste não é apenas uma linha de comboio, faz parte de uma história, de um património territorial que urge defender e, se as histórias do passado são importantes, mais relevante se torna a sua dinamização, sob pena de estarmos a perder um percurso fundamental para a economia e para o turismo.*
[1]In “Linha do Oeste: Óbidos e Momentos Artísticos Circundantes”, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998, p.9
[2] Ib.*FIDALGO, Carlos. in “O Alcoa”, 29 de junho de 2017, p.23.