8 de novembro de 1946
O arrais Manuel Amaro (conhecido por Manel d’Amára) chegou ao paredão e fitou o mar. Aquela manhã de sexta-feira, ainda no berço, mostrava-lhe um mar calmo, com pouca ondulação, e uma aragem “mareira” parecida com aquelas que se sentiam no Verão. Desceu ao areal e juntou-se à sua companha, pronta para varar o bote ao mar. O dia anterior tinha sido de boa venda, reflexo da pescaria que havia trazido para a terra: tinha sido uma grande “maré de mar”.
Tinha dado ordens para as 9,30 horas e os seus camaradas, ainda felizes e contentes pela pescaria do dia anterior, tinham chegado cedo, com os seus baús e fóquins carregados de comida e de bebida, que a faina deveria ser de dois dias.
À “borda d’água”, e após dois ou três “salhas” valentes, a embarcação começou a “nadar”. Já com todos a bordo, engatou à vante e o bote, atravessando duas pequenas ondas, passou a “pancada de mar” e começou a cortar a superfície do mar, navegando rumo a Oeste. Pouco depois, “apanhada” a “cana” (canhão da Nazaré), o arrais guinou o leme e apontou a proa da embarcação rumo ao pesqueiro, enquanto ia pensando na desdita dos pescadores da Nazaré.
Sem porto de abrigo, os mais próximos eram os de Peniche e da Figueira da Foz, não tinham possibilidade de pescar em embarcações maiores, mais seguras, que pudessem aguentar a vaga. Os botes, matutava ele, mediam entre os 8 e os 9 metros e a sua lotação máxima era de 10 ou 12 homens: eram umas autênticas cascas de noz. Sem porto de abrigo, os pescadores da Nazaré num ano tinham 140 dias livres de pesca, 37 eram perigosos e nos restantes 188 não podiam “ir ao mar”, ou seja, mais de seis meses sem ganha-pão.
Terra de pescadores, a Nazaré, tinha e tem a prática e o amor da pesca do tempo dos fenícios. Mas a sua luta foi sempre angustiosa com o rodar do tempo, porque o porto nunca mais era construído. Luta de Adamastor, contra a natureza é essa, com certeza, a da sua gente que, mal o Verão sacode os seus primeiros raios de oiro, cede a praia à gente janota da cidade e caminha com as redes e os botezinhos, para o sul, lá para os lados da foz do Alcoa.
Absorto nos seus pensamentos nem dava pelo tempo a passar. O bote “Rosa Amaro” navegava para norte e o seu destino era a Cana de Noroeste, a oeste de São Pedro de Moel, ali a 35 ou 40 milhas da Nazaré. Os pescadores põem nomes ao mar como a gente que vive em terra põe nome às ruas por onde caminha. Para lá, pensava ele, também se deveriam dirigir outras embarcações da pesca do anzol (do alto): a do “Zé Cara-de-Ferro”, a do “José António”, a dos “Conchachas”, a dos “Albertos” e a “Redinha”.
***
Às 10,30 horas da manhã, os camaradas do bote “Redinha”, com o ramo de flores preso à roda da proa, alguns sem se despedirem das mulheres, varavam a embarcação ao mar e, depois, seguiram no encalço do “Rosa Amaro”. O contramestre Isidro de Sousa Valverde, irmão do proprietário do bote, iria servir de arrais, porque o da “Redinha” estava doente (ver nota abaixo). Neste dia em que ia “governar” a embarcação, levava como companha gente esforçada, da melhor da Nazaré: homens a dobrar os 60 anos, autênticos “lobos do mar”, e adolescentes que se faziam ao largo pela primeira vez.
Encomendada a sua construção no dia 11 de setembro ao mestre Policarpo Vicente Isaac, o bote “Redinha” foi registado na Capitania do Porto da Nazaré, no dia 2 de novembro, pelos seus proprietários José de Sousa Valverde e Manuel Pedro de Matos, com o número N-1675-C.
A matrícula da companha havia sido feita a 4 de novembro e no dia 5 foi matriculado o 13º camarada, António Martins Bulhões. Do rol de matrícula não constava o 14º tripulante.
Era a segunda experiência da “Redinha”, um bote com 8,5 metros de comprido que, na primeira vez, tinha “metido água”, a madeira não tinha “apertado” bem e, por isso, algumas mulheres, como se adivinhassem a tragédia, não queriam que os seus homens partissem para o mar.
***
Durante a tarde e a noite dessa sexta-feira, a tripulação do “Rosa Amaro”, tal como na “maré de mar” anterior, estava feliz e contente, esperançosa em mais uns dias de grande pescaria. No entanto, estranhava o arrais Manel d’Amára, não vira outra qualquer embarcação. Talvez fosse da noite, pensou.
9 de novembro de 1946
Pela tarde de sábado, “levantou-se” vento e o mar começou a ficar encrespado.
Já com uns bons quilos de peixe a bordo, o arrais do “Rosa Amaro” decidiu fundear o bote. Deitada a âncora ao mar, o ferro veio de “garra”. Tomou então uma decisão, resolvendo não tentar a fortuna nem o mar. Aproou o bote em direção à Nazaré e partiu.
***
Nesse sábado, o proprietário da “Redinha”, José de Sousa Valverde, na Capitania, telefonou para Buarcos, onde se dizia que tinham arribado os pescadores da Nazaré. De lá, informaram que estava um bote com as características da “Redinha”. Ficaram descansados.
Havia alguma lógica naquela “localização”. A Figueira da Foz era o porto mais próximo da Cana de Noroeste.
10 de novembro de 1946
Às quatro da madrugada desse domingo o “Rosa Amaro” encalhava no areal da Nazaré, com o mar calmo, pois a tempestade ficara para trás. No areal, enquanto as oito juntas de bois “puxavam” o bote para a parte superior do areal, cada junta a custar dez escudos, as mulheres e outros parentes correram a abraçar a companha. Com elas apareceram também as vozes ansiosas das famílias dos pescadores da “Redinha”.
– Não viram a “Redinha”?
Nem lhes tinham posto a vista em cima.
***
Pela manhã desse domingo fizeram a venda do peixe. O arrais “Manel d’Amára” continuava a matutar sobre o que poderia ter acontecido. A “Redinha” tinha tido as três vistorias de engenheiros de Lisboa pertencentes a um organismo do Ministério (como era comum em todas as embarcações construídas): a primeira ainda nas cavernas, a segunda em branco e a terceira já com o motor. Mas por ser um bote muito pequeno, era atreito a que o vento e as vagas o pudessem voltar facilmente.
11 de novembro de 1946
Passou o domingo e, como não houvesse mais notícias, o proprietário voltou a dirigir-se à Capitania, de onde telefonaram de novo para Buarcos. De lá, nada puderam confirmar.
O senhor Joglar, Capitão do Porto, muito incomodado com aquela situação, pegou no telefone e ligou para a base aérea de São Jacinto, em Aveiro, e pediu que ajudassem com buscas aéreas.
Entretanto, e como sempre acontece nesta e noutras situações, corria um boato dando conta de informações vindas de Peniche que asseguravam que a “Redinha” estaria em Cascais!!!
De Cascais viria a confirmação de que efetivamente uma embarcação aí havia arribado: era um barco espanhol.
Voltou-se ao ponto inicial. A esperança estava agora centrada no avião que decolara do contratorpedeiro “Dão”. Sobrevoou o mar, durante algumas horas, mas nada conseguiu descobrir. No dia de São Martinho, as esperanças já não eram nenhumas…
Vieram as conjeturas, em que nós nazarenos somos especialistas: a “Redinha” teria sido abalroada por uma traineira da pesca da sardinha, do Norte, ou por um arrastão espanhol, etc.!!!
Apenas uma verdade era palpável, há dois anos que a Nazaré não sofria tão grande luto nos seus filhos. Naquele dia estava de negro.
12 de novembro de 1946
A traineira do “Francione” zarpa da Nazaré em direção à Cana de Noroeste para efetuar buscas. Não consegue lá chegar, devido ao vento, e volta para trás.
As esperanças reduziram-se a pó. Eram dados como desaparecidos os tripulantes da “Redinha”.
***
Notas:
Esta é uma “estória” real que retrata aqueles quatro dias malditos de novembro. Para a escrever contei, como é óbvio (ainda não era nascido), com pesquisas feitas a periódicos portugueses e a alguns autores nazarenos que já se debruçaram sobre o assunto. Era para ter sido publicada há um ano (em 2022) mas quis o destino que apenas hoje o pudesse ser.
A minha grande dúvida prende-se sobre quem iria a “governar” a embarcação: se o contramestre Isidro de Sousa Valverde, irmão do proprietário do bote, como afirmo acima, ou o mestre José Légua Varino (o Zé da Lusia), como aponta o escriba Eugénio Couto quando versa sobre o assunto (na Revista Nazaré Marés de Maio de 2019 ou no blogue da Liga dos Amigos da Nazaré).
Os dados dos camaradas desaparecidos no mar farão parte de outro texto que, entretanto, publicarei. Agradeço desde já a ajuda do Dr. Carlos Fidalgo, meu cunhado, na pesquisa de alguns dados biográficos dos tripulantes.
Aquele mês de novembro de 1946 foi medonho no que às condições do tempo diz respeito. Abaixo apresento uma pequena cronologia dos incidentes ocorridos após o fatídico dia 8.
14 de novembro de 1946
Segundo os registos à data, 2.886 era o número de pescadores da Nazaré, o quarto centro piscatório do país, logo a seguir a Aveiro, Porto e Leixões (Matosinhos): 2.886 pescadores para cerca de 300 embarcações de pesca. Se houvesse porto de abrigo, aumentaria o número de botes e traineiras de maior tonelagem, menos vulneráveis ao vento e aos golpes de onda rija. Avaliava-se à data em 50 por cento a quebra da duração das embarcações, por motivo do encalhe de barcos ameaçados de perigo, estando orçada em cerca de 300 contos a despesa anual com o transporte de embarcações para a terra.
Antigamente, quando uma tragédia acontecia, durante dias, quase não se falava, não havia festa. Os tempos mudam, porém. E, neste dia, os pescadores foram ao cinema. Mas tiveram de pôr uma fita que muito os tentasse: era de “cóbois”. Os pobres não resistiram…
16 de novembro de 1946
Há dois dias que, defronte da costa da Nazaré, nas “Bóias”, se encontrava ancorada uma traineira espanhola da pesca da sardinha “Ypocampo”, registada em Vigo e com uma tripulação de 33 homens. Acolhera-se aqui com receio do temporal que, de novo, se avizinhava.
No dia anterior, um tripulante tinha sido desembarcado, doente, recolhendo ao hospital. Nessa noite, como os sinais de tempestade aumentassem, a Capitania tentou contatar aquela embarcação, por intermédio do telégrafo luminoso.
E foi neste dia que, presenciado por centenas de homens e mulheres que acorreram ao areal, foi possível desembarcar, no salva-vidas guardado na Capitania, 28 tripulantes, visto que o arrais Jesus Curra Soarre, os dois motoristas e um tripulante tinham decidido ficar a bordo.
Nesse mesmo dia, à noite, devido à violência do temporal, naufragava, na barra de Vila Real de Santo António, um barco de pesca espanhol, registado em Isla Cristina, tendo morrido afogados os seus cinco tripulantes, entre os quais figurava um português.
17 de novembro de 1946
Na Fuzeta, devido ao forte vento que assolava a costa algarvia, virou-se um barco da sacada, mas os seus tripulantes foram salvos. O vento ciclónico pôs em perigo diversas outras embarcações.
No porto de Lisboa, rebocado pelo vapor de pesca português “Ilha do Corvo”, atracava o palhabote espanhol “Luísa” que tinha sido encontrado, sem qualquer tripulante a bordo, a trinta milhas ao mar das Berlengas.
19 de novembro de 1946
No porto de Leixões, rebocada pela traineira “Lemy”, entrava a traineira espanhola “Assuncion Gomez”, sem qualquer tripulante a bordo, que tinha sido encontrada a 5 braças de água em frente da costa de Aveiro.
20 de novembro de 1946
Devido ao mau tempo que, desde há dias, vinha assolando o Atlântico, arribaram ao Tejo dois barcos espanhóis, o “Sac 9” e o “Golfo de Biscaia”, ambos registados no porto de Bilbau.
– BATALHA, José Vila Mona Batalha, UMA “ESTÓRIA” DO DESAPARECIMENTO DO BOTE “REDINHA”, 8 de Novembro, 2023.
Link: https://www.facebook.com/photo?fbid=6963535197025896&set=pcb.6963536107025805