São vários os autores que ao longo de décadas, e mesmo séculos, têm dissertado sobre D. Fuas Roupinho, sobre o período temporal da edificação da Ermida da Memória e/ou do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré.
No entanto, e apesar de tudo o que tem sido escrito, temos a plena consciência da importância do Culto a Nossa Senhora da Nazaré – nunca o colocaríamos em causa – para a comunidade local e para todos os que visitam o Sítio de Nossa Senhora da Nazaré, pelo menos antes da “redescoberta” das ondas gigantes da Praia do Norte que, diga-se de passagem, já eram bem conhecidas da comunidade local e nem sempre pelos melhores motivos!
Sem mais delongas, Alberto Pimentel relata – dentro da fiabilidade que lhe é reconhecida – a sua vinda à Nazaré e, em particular, retira as suas ilações, comparando-as, também, com um outro “acontecimento” ocorrido séculos após o milagre ocorrido no Sítio de Nossa Senhora da Nazaré.
A ciência não pode ser um exercício “sentimental”, antes deve ser analítica, sem paixões e imaginações despropositadas. Talvez por isso, entre os muitos que existem, como já referimos, este relato de Alberto Pimentel se enquadre numa perspectiva diferente mas, ainda assim, digna de aceitação, posto que a legimidade da dúvida é tão importante como o empirismo.
Que as dúvidas sejam permanentes para os investigadores e que nenhum trabalho de investigação – seja quem for o autor – se considere encerrado.
Chronicas de Viagem[1]
II
A Nazareth
«Acabam de contar os jornaes que há poucos dias, em Cautterets, os cavallos que puxavam o break de Sarah Bernhardt,[2] assustando-se, na ponte de Renquez, com estrondo da agua, estiveram empinados sobre o abysmo, prestes a despenharem-se na corrente.
É pouco mais ou menos a historia do conhecido milagre de Nossa Senhora da Nazareth.
E digo pouco mais ou menos porque, sobre o rochedo da Nazareth, foi miraculosamente suspenso á beira do abysmo um cavaleiro, que se chamava D. Fuas Roupinho, e não um break, que conduzisse Sarah Bernhardt.
A razão é simples: No tempo de Fuas Roupinho não havia nem break nem Sarah Bernhardt. O leitor deve ficar convencido de verdade d’esta asseveração histórica.
Ora, no milagre da Nazareth, se o cavallo ficou empinado sobre o rochedo, foi porque Nossa Senhora appareceu a soccorrer o cavalleiro, que a invocára.
No caso de Sarah Bernhardt, quem acudiu á portentosa actriz não foi Nossa Senhora da Nazareth, mas a própria Sarah Bernhardt.
No momento do perigo, Sarah, que guiava o break, saltou da almofada, poz-se á frente dos cavallos, segurou-os pelos freios, e … suspendeu-os no azul, sobre a torrente…
É trágico!
Póde muita gente lançar este caso á conta das numerosas blagues que o noticiario francez borda todos os diaz phantasiosamente em torno do nome de Sarah Bernhardt.
Mas, por muito grande que seja a incredulidade d’essa gente, o caso da ponte de Renquez não me quer parecer menos verosimil do que se me affigurou outro dia a historia do milagre da Nazareth.
Eu, como toda a gente, fui educado a ouvir falar do milagre da Nazareth, e a vel-o memorado em estampas coloridas, embora grosseiras, que figuram D. Fuas Roupinho, de capinha de tenor e bonnet de penna de gallo, montando um cavallo branco, que, de mãos no ar, se empinava sobre um rochedo imminente ao oceano, o qual oceano fremia em vagalhões, hyante e profundo.
Um veado, de larga armação ramosa, saltava pelo ar, prestes a afundar-se, o qual veado era nem mais nem menos que o diabo.
Nossa Senhora da Nazareth, envolta em resplendores celestes, apparecia no espaço, acudindo solicita á invocação do cavalleiro, o qual era, como já dissemos, D. Fuas Roupinho.
Pessoas que leram os Quadros historicos de Castilho, e n’elle o rimance da Nazareth, sabiam, além d’aquillo, que este caso milagroso occorrera n’uma fresca manhã de setembro, e que o rochedo do milagre estava pendurado sobre o oceano na altura de duzentas braças.
Rompeu-se com o sol a nevoa, E ao resplendor que luziu, Sobre penha, que
duzentas Braças pende ao mar se viu
Co’as mãos em vão sobre o abysmo, Trepidar e descair, Ennovelar-se erriçado. Pular atraz, refugir
Um cavallo! e o bom Dom Fuas, Que o remessára até ali, Saltar por terra, clamando: –«Por ti, Senhora, é por ti!»
O milagre da Nazareth fôra posto em oratoria no theatro.
Um rochedo de papelão, suspenso sobre uma torrente de lona azul, apparecia recortando-se ao longe sobre o panno do fundo, que representava a vastidão infinita do ceu.
Um cavalleiro, tambem de papelão, galopava sobre um cavallo da mesma materia prima, em perseguição de um veado que não era mais consistente.
Cavallo e cavalleiro ficavam suspensos sobre o abysmo, e o veado despenhava-se no mar com grande applauso dos espectadores, que jubilavam catholicamente por vêr assim justamente castigado o diabo.
Quando outro dia fui das Caldas da Rainha á Nazareth, evoquei na minha memoria, que ainda não é das peiores, todo o apparato sobrenatural d’essa tradição piedosa, com que na infancia tantas vezes fui acalentado pela velha criada Joanna.
Não sabia eu então onde ficava a Nazareth do milagre, nem me era preciso sabel-o para o crêr.
O que eu a preceito sabia, e não precisava saber mais nada, era que o milagre acontecera, e que lá estava ainda, onde quer que fosse, o rochedo pendente ao mar; e o vestigio sempre vivo de uma pata do cavallo.
Mais tarde a poesia de Castilho revestiu de prestigio, na minha imaginação, a tradição do milagre, e, finalmente, mais de um livro de Julio Cesar Machado, fallando das grandes festas dos cyrios da Nazareth, aguçara-me o apetite de ir um dia, quando podesse ser, ao local do milagre.
Fui. Não era pelo tempo dos cyrios, não havia portanto nem festas, nem romeiros, nem lôas, nem offerendas. Nada d’isso. Mas o que eu esperava que houvesse, n’aquelle dia de agosto em que fui á Nazareth, era o rochedo em cima e o mar em baixo. Isso me bastaria para que eu, encontrando todos os pormenores da tradição em inteira conformidade com as minhas recordações, continuasse a acreditar no milagre com o mesmo prestigio e com a mesma fé.
Fui, com estimaveis companheiros de viagem, que n’esse dia eram tres.
E, não devo occultal-o por vergonha, á medida que da estação do Vallado avançava para a Nazareth, o meu coração não trotava menos do que as miseras pilecas que iam arrastando o char-á-bancs.
Não desgostei de vêr de perto a Pederneira, que eu ha annos escolhera para
localisar ahi um pequeno conto que, se me não engano, anda impresso no
livro Homens e datas.
Alexandre Dumas pae diz algures que não podia descrever os logares sem que primeiro os visse. Creio que é n’um dos volumes das Causeries. Eu, para em nada me parecer, infelizmente, com Alexandre Dumas, affoutava-me a escolher logares de que algumas pessoas me haviam falado com certo agrado, motivo por que me não ficavam desagradando tambem a mim.
Ora um d’esses logares fôra a Pederneira.
E a Pederneira lá estava com a sua egreja e com as suas casas, um pouco conforme ao que eu havia imaginado a seu respeito.
Mas já então se via no horisonte o planalto da Nazareth, a que chamam o Sitio, e nenhum rochedo avultava tanto, que eu pudesse desde logo gritar aos meus companheiros de viagem: «É aquelle!»
Havia effectivamente alguns rochedos alcandorados á borda do planalto, mas nenhum d’elles destacava por imminente ao mar, como nas estampas coloridas, que tantas vezes eu tinha, quando pequeno, contemplado em credula camaradagem com a velha criada Joanna, a minha velha e querida Joanna.
O que havia em baixo, mesmo por baixo dos rochedos, era a praia,–areia e casas.
Póde a praia ser muito boa para banhos, mas não é para isso que eu quero as praias. Mais uma vez declararei que o meu ideal balnear não vae além da tina e da esponja. Gosto simplesmente das praias para vêr o mar; mas quero vel-o d’alto, que é a unica maneira que a gente tem de contemplar o oceano sem tamanho vexame para a pequenez humana…
É certo que na Nazareth poderia, para vêr o mar a meu modo, subir ao planalto, ao Sitio, como lá se diz.
Mas custa tanto subir na Nazareth da praia para o Sitio, emquanto o ascensor mechanico não estiver prompto, que é esse um prazer que mal se póde ter todos os dias, pelo incommodo que importa.
Assim, os banhistas da Nazareth teem que contentar-se de vêr o oceano como naufragos que estivessem mettidos dentro d’elle. Parece, pelo menos, que está a gente tomando banho dentro de uma tina, e que dentro d’essa tina está o mar. Não gosto. É um capricho, uma idyosincrasia, mas não gosto.
Prefiro a Ericeira á Nazareth, porque na Ericeira a gente vê sempre o mar do alto das ribas ou das arribas, como diz a gente da terra, e assim, visto do alto, o mar parece que não deprime, que não esmaga tanto a pequenez do homem.
Mas na Nazareth é possivel que o solo tenha passado por alguma grande commoção, que alguma revoluçcão geologica haja feito recuar o oceano para além da perpendicular do rochedo.
O scenario do milagre póde ter mudado muito desde os tempos da fundação da monarchia até hoje.
Como porém já não encontrei o mar vagalhando debaixo do rochedo, e como o rochedo, visto de longe, não me deu a impressão do milagre, peguei a descrer do milagre por causa do rochedo, Deus me perdôe!
Bem sei que era muito audaz a minha exigencia de querer encontrar tudo como no tempo de D. Fuas Roupinho e na hora do prodigio. Mas assim mesmo é que eu queria ter encontrado ainda as coisas… E quer-me bem parecer que só me haveria contentado inteiramente toda a mise-en-scene do milagre: o cavallo empinado sobre o rochedo, o veado descrevendo na queda uma larga curva, e o mar em baixo, espumoso e vasto. Tal qual como nas estampas.
Fui acima, ao Sitio, em trem, para vêr se podia reconstruir, deixem-me dizer assim, o meu ideal da Nazareth mais do seu caso milagroso.
O Sitio é, fóra do tempo dos cyrios, de uma tristeza morta, de uma solidão sepulchral.
Que mau senso teve o diabo! Comprehendia-se que tivesse querido attrahir D. Fuas Roupinho a um sitio deleitoso, infernalmente bello e convidativo.
Mas áquelle logar! áquella solidão! Ali não ia ninguem, ali ninguem cahiria na tolice de se deixar attrahir pelo diabo, de mais a mais disfarçado em veado! Ainda se fosse em mulher!…
Eu conheço varias partidas do diabo, que mostram que elle não tem tão mau senso como isso! O diabo é sempre artista nos logros que arma, tão bem armados que os proprios logrados costumam dizer: «Esta só pelo diabo!»
Isto é: só armada por elle.
Desconfiado, parti logo do principio de que Fuas Roupinho se não tinha deixado engodar tão tolamente pelo diabo, n’aquelle sitio, como a lenda dizia.
O rochedo, visto de cima como visto de baixo, continuou a não me dar a impressão do milagre. Vi um signal na pedra, e um rapazito disse-me que era o vestigio de uma das patas do cavallo.
Confesso que me fizera maior impressão,–muito maior!–a cruz de pedra que Santo Antonio, tambem segundo a lenda, riscára com a unha na sé de Lisboa, quando era menino do côro, e o diabo lhe appareceu feito mulher.
–Sim–disse eu quando vi a cruz na sé–devia ser isso… para um santo que quizesse resistir!
Mas na Nazareth, espreitando para o rochedo por cima de um muro que me dava pelos hombros, nenhuma voz disse dentro em mim:
–Sim… é o signal da pata do cavallo. Devia ser assim para um cavallo…que não quizesse cahir!
E a historia do milagre galopava no meu espirito para o abysmo da incredulidade, como o cavallo de D. Fuas Roupinho, na lenda, para o abysmo do oceano.
Mas entrei na egreja, doirada de bella obra de talha, vi a imagem de Nossa Senhora no throno, fixei por alguns momentos a sua rude esculptura, e pareceu-me que bem podia ter sido tudo como a lenda contava…
Quando o homem está de joelhos, sente-se sempre menos propenso á duvida…
Quando voltei ás Caldas, disse a Julio Cesar Machado, que estava lá:
–Olha que tu, com os teus livros, tiveste muita culpa n’esta passeiata que eu fiz hoje á Nazareth. Não gostei…
E elle respondeu-me:
–Aquillo é muito bom quando é pelo tempo dos cyrios e pelo tempo… dos dezoito annos, que foi quando eu vi bem os cyrios…»
*
[1] PIMENTEL, Alberto. Chronicas de Viagem, 1888.
[2] Sobre Sarah Bernhardt, A transgressora vida de Sarah Bernhardt, uma das primeiras atrizes a se tornarem megacelebridades – BBC News Brasil (acedido em 20-09-2021).
**
«Alberto Pimentel, nasceu no Porto a 14 de Abril de 1849. Com uma obra extensa e variada, escreveu poesia, romance, teatro, biografia, obras políticas, entre outros géneros. Camilo Castelo Branco – que conheceu pessoalmente, lhe prefaciou dois dos seus livros e é matéria de algumas das suas obras – é o seu ídolo e o seu Mestre. Morreu em Queluz no dia 19 de Julho de 1925.» https://www.sistemasolar.pt/pt/autor/1826/alberto-pimentel/?ac=autor (acedido em 08/10/2021).