Tinhas razão José.
Não falhaste em nada no que escreveste naquele livro cujo título não lembraria a ninguém, nem à mais imaginativa cabeça viva neste mundo retorcido de ideologias.
Alguém poderia lembrar-se de escrever sobre as consequências da não morte num único dia?!
Alguém poderia imaginar as implicações que esse inimaginável acontecimento teria para a Humanidade, a não seres tu, José?
Não. Trilhaste a história de uma forma que – para quem a leu – apenas um genial sentimento humanista poderia descrever. E lá foste escrevendo, mesmo sabendo que o que narravas era tão improvável como se agora alguém inventasse uma teoria matemática que colocasse em causa que a distância mais curta entre dois pontos é uma recta!
Mas, sabes José, estejas onde estiveres, no teu Portugal (que te abandonou) no teu Mundo, vive-se uma situação análoga à tua, diria mesmo, profecia. Talvez fosse melhor, e apesar de tudo, o que nos fizeste pensar, não morrer ninguém num só dia.
Hoje morrem pessoas em barda, tudo por causa de um bicho desconhecido que veio dos lados do Oriente, deu a volta ao mundo, tocou nos quatro pontos cardeais e transformou o paradigma de uma vivência “normal”.
Hoje, José, As Intermitências da Morte, poderiam ter um outro volume, quem sabe se te interessava escrevê-lo, sobre as intermitências de uma sociedade consumista que descurou o social em prol do económico.
Hoje, José, enquanto o SpaceX leva dois astronautas à estação espacial, aqui em Portugal andamos a recuperar comboios com cinquenta anos, entre outras coisas que nem vou mencionar.
E quem anda de comboio, José, não são as pessoas?
Pois é, José, são as pessoas. O Povo. O que paga e paga e paga e paga, mas não vai no SpaceX, nem em sonhos porque não tem dinheiro para essas coisas e, jogando pelo seguro, tinha medo só de pensar em não voltar ao seu pedaço de chão que, por muito pequeno que seja, é seu, é o seu castelo, mesmo sem muralhas.
Assim estamos, José. Ninguém se entende e ninguém entende o outro alguém. O Corona é como o Toyota, veio para ficar e ficou. E nisto temos de chamar o Darwin e a sua acertada teoria da evolução das espécies. Tu percebes o que quero dizer.
Depois, José, vieram as máscaras, as viseiras, o lavar as mãos durante vinte segundos, as soluções assépticas, o distanciamento social, a etiqueta respiratória e não podes dar um abraço aos teus mais queridos. E ficas em casa, porque ali, no teu castelo, ele – o vírus – não entra.
Não sei José. Mas penso que o último parágrafo, desse teu fabuloso livro, poderia ser adoptado como uma prece, quem sabe?
Escreveste tu, enorme José:
“A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu”
Já nem falo no “Ensaio sobre a cegueira”.
Enorme José, tu é que sabias.