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“A Nazaré do meu passado: Recordações,
por Alvaro Valente
Quando eu cheguei à Nazaré pela primeira vez, – foi isto há perto de quarenta anos! – fiquei logo fascinado pelas suas belezas naturais.
O cenário daquela enorme angra deslumbrou-me; o pitoresco do conjunto dominou-me por completo.
Caía a tarde num poente maravilhoso, – desses poentes que nos obrigam ingenuamente [sic] a procurar o «raio verde» de Júlio Verne.
O promontório à direita, com a pedra e Guilhim no término, projectava a sombra mastodôntica sobre as ondas que o mar estendia, em espuma de prata fosforosa, pelas areias da praia.
Ao longe o sol, na despedida, faiscava revérberos.
E pela costa fora, à esquerda, ia uma azáfama e uma barafunda que imitavam inarmónicos orfeões.
Era a hora da lota:
– Montes de peixe luzidio por aqui e por além; magotes em volta, na expectativa; de gatas, a ralé surripiando o carapau, – como quem não quer a coisa…
O espectáculo era para mim verdadeiramente inédito!
E quando regressei à casa alugada, noite pronta, eu já tinha pela Nazaré aquela simpatia que perdurou até o presente.
Dez anos seguidos fui o veraneante a feriar os dois meses da ordem, na sua intimidade.
Subi ao Sítio para descer à fortaleza e ao forno de York, – onde Manuel de Arriaga congeminou e escreveu grande parte das suas «Harmonias Sociais».
Pela praia do Norte divaguei horas e horas, escutando a cantilena do Oceano, realizando meus pique-niques e ajudando, de tempos a tempos, o alar das redes em troca de uma escudela de linguados.
Visitei bastas vezes a pata do cavalo de D. Fuas, gravada na rocha, e deliciei-me com os panoramas imcomparáveis [sic] que de lá se avistam.
Assisti às Festas da Senhora da Nazaré, comi as frescas nozes com pão, – que sabem «a casados» – ouvi os concertos e presenciei os bailaricos desopilantes do povo, à desgarrada.
Trepei à Primavera, à Pederneira, a S. Bartolomeu, em tardes e paisagens que não mais esquecem.
Prolonguei-me à foz do Alcoa e à Ponte da Barca; andei de bote nas águas mansas; e fiz nos pinhais e nas margens minhas escapadas pantagruélicas.
Recriei-me, em sessões inolvidáveis, com brigas originais das mulheres rabinas e muito realistas…
Pelas manhãs radiosas embasbaquei na praia, sob o toldo do moreno Inácio Marçagão, observando o rolar da vaga e as vagas desmonstrações plásticas do momento.
Fui pescador à linha e pesquisador de lapas nos calhaus.
Fui romeiro, alpinista, banhista, serenateiro mono, pregador entusiasta, amigo dedicado.
Que admira, pois, que ainda hoje continue afirmando a mesma simpatia e o critério de a considerar a praia mais característica de Portugal?
Eu te saúdo Nazaré? Eu te saúdo, na amargura duma saudade intensa que todo me profunda!
Terra dos meus encantos longínquos, praia das minhas dolorosas recordações!
Ainda agora, ao rabiscar desta desataviada peregrinação, eu recordo o Álvaro Laborinho, o colega Ascenso, o Catatau, o Brilhante, o Vieira, o Joaquim «sem assento», o Botas – uns ainda vivos e outros desaparecidos na Eternidade, e oiço, como num búzio torturante:
– Já tem banhêro?
– Minha rica amiga…
-Que o mar ta coma!
– Nan vales um safio nem um cação…ão…ão.
E julgo ainda que assisto, numa noite luarenta de Agosto, ao debate escabroso de duas nazarenas que se esbracejavam para os céus e gritavam:
-Ó lua! Ó lua! Vê lá esta que nem sabe dizer «um copo de água em francês»!
– Ó lua! Ó lua! Vê lá esta que só conhece o peixe agulha!
Ah, meus amigos!
É por estas e por outras que as mães, às vezes, cantam com vontade de chorar.
Alvaro Valente
Casa Ofélia, 26-7-955”[1]
[1] “A Nazaré do meu passado”, por Alvaro Valente, in Semanário A Província, Ano I – N.º22, pp. 1 e 11.
Sobre a pedra do Guilhim: https://pedradoporto.blogs.sapo.pt/sobre-a-pedra-do-guilhim-31531
Sobre a Comissão de Turísmo em 1955: https://pedradoporto.blogs.sapo.pt/sobre-a-comissao-de-turismo-1955-68916